É sobre isso. E não, não tá tudo bem. - Maria Fernanda Medina Guido

É sobre isso. E não, não tá tudo bem.

Pouca gente sabe, e acho que só hoje entendi que a Gordofobia foi a última gota d’água no meu “copinho quase transbordando” que desencadeou minhas crises de ansiedade.

Em fevereiro do ano passado, fui a uma consulta de rotina no dentista. Me sentei naquela cadeira como vinha fazendo mensalmente, às vezes mais, nos últimos 17 meses. Mas naquela tarde, ao me levantar para cuspir algo e me deitar novamente, a cadeira tombou comigo para trás. Não me machuquei, foi só mesmo muito barulho e praticamente o consultório inteiro vindo abaixo, afinal muita coisa era acoplada a ela. Meu dentista, a época, não teve nenhuma reação.  Perguntei como saía dali, já que ainda estava “sentada na cadeira” porém de ponta cabeça. Não obtive resposta. Perguntei se seria pelo encosto da cadeira, me arrastando pelo chão, e ele me disse que sim, e aí me perguntou se eu conseguiria e se eu não estava machucada, eu acho. Digo “eu acho” porque não sei se é minha mente querendo que esse mínimo cuidado tivesse acontecido ou se realmente aconteceu, honestamente não sei dizer. Enfim, me sentei no chão, e fiz o que fiz a vida inteira como gorda: comecei a rir de mim mesma. Ele se acalmou e começou a rir também e me disse que isso já tinha acontecido uma vez, que não era a primeira. Ufa?! Uma pessoa veio, recolheu tudo, ele se reorganizou, terminou o que precisava ser feito e vim embora.

Entrei no carro me sentindo péssima. Como EU podia ter feito isso comigo mesma? Passei algumas horas me torturando como sempre e segui.

Passou.

Três dias depois, fui a uma podóloga e a adivinhem?! A cadeira era beeem parecida a de um dentista. Senti meu corpo endurecer. Me sentei toda dura e resolvi que ía contar o que tinha acontecido a ela, era segunda vez que estava indo nela, mas foda-se, iríamos para esse grau de intimidade. Ela ficou horrorizada, primeiro pelo fato da cadeira dele não ser chumbada ao chão, depois me deu uma aula de cadeiras rs, me garantiu que eu jamais cairia da cadeira dela e cuidou de mim. Só um adendo: continuo indo lá todos os meses, ela nunca mais se esqueceu disso e me atende em outra cadeira para que não me sinta desconfortável, se isso não é respeito, não sei o que é.

Voltei pra casa e ao me sentar pra almoçar, comecei a sentir uma angústia que parecia que ía me sufocar. Uma falta de ar mesmo tendo ar para respirar, uma dor no peito, uma vontade de chorar e fugir, tudo ao mesmo tempo. E de tanto ouvir meus pacientes narrando suas crises, sabia o que estava acontecendo, estava tendo uma crise de ansiedade. Deixei que ela viesse, fui respirando, me acalmando, até que passasse. O sinal de alerta agora estava aceso e sabia que tinha chegado ao meu limite.

No dia seguinte, em conjunto a minha psicóloga, resolvi que era a hora de me consultar com um Psiquiatra. Foi uma decisão muito acertada e hoje entendo como a ansiedade vinha me consumindo há muito tempo. Mas costumo dizer para quem me pergunta o que aconteceu: foi a pandemia, foi o cansaço, foram muitos anos de muito cuidado com os outros e pouco comigo… e claro, foi um pouco de tudo isso. Mas como minha psicóloga diz e inclusive me apropriei dessa metáfora e uso com meus pacientes rs, meu copo estava cheio, praticamente transbordando, e só hoje vejo, de muito descaso, desrespeito e gordofobia também.

Entendo perfeitamente o pensamento estruturante que faz um dentista comprar uma cadeira que não suporta o meu peso e não enxergar isso quando começou a me atender 17 meses antes. Entendo sua apatia quando estou lá estatelada no chão do seu consultório e ele não consegue nem dizer o que fazer, entendo não receber um pedido de desculpas por essa situação bizarra que vivi. Entendo o meu comportamento, de rir de mim mesma para amenizar a culpa e responsabilidade do dentista ou o meu comportamento de ME culpar por ele não ter uma cadeira melhor. Entendo a gargalhada da colega de profissão a primeira vez que criei coragem para contar isso três meses depois num ambiente seguro num curso e recebo esse feedback. Entendo tudo isso. Mas não aceito mais nada disso. Não mais. Porque em absoluto, não há nada de errado comigo, só tenho um corpo maior.

Me escancaro mais uma vez num texto para te dizer que se você se reconheceu aqui, primeiro, não se sinta só e segundo, por favor acredite, não há nada errado com você. E se vocẽ não acredita em mim, veja bem esses dados, não tão atualizados, porque o último Censo do IBGE rolou em 2010, mas veja:

Somos atualmente (aproximadamente)  – 54% da população brasileira composta por Negros, 52.2% composta por Mulheres, 26,8% composta por Pessoas portadoras de Obesidade, 60,3% de pessoas com sobrepeso, 9% Pessoas portadoras de algum tipo de Deficiência e 7,5% da população LGBTQIA+  assumida. No entanto, praticamente tudo é voltado ao padrão normativo: homem, branco, heterossexual e magro. Não é estranho?

Nos ensinaram e internalizamos que somos invisíveis. Somos? Obviamente não. E a hora que as chamadas “minorias” que não são tão minorias há muito tempo entenderem isso, o jogo vira. Mas pra isso acontecer precisamos nos apropriar de como tudo funciona e cobrar cada vez mais quando uma injustiça acontecer conosco.

“Ahhh mas vocês querem romantizar uma doença!”, “Querem todo mundo morrendo cedo, com colesterol nas alturas e infarto fulminante?!” Tem tanta desinformação nessas e outras falas que olha… não existe romantização da obesidade, isso é tão patético. A luta não é para que as pessoas engordem, a luta é para que TODAS as pessoas, independente do seu peso, sejam respeitadas. É uma luta sobre acesso. Uma luta sobre direitos básicos. Ou ônibus e maca de hospital viraram luxo agora?

E se você chegou até aqui e nunca passou por nada que contei, reconheça o tamanho do seu privilégio e tenha mais empatia por quem ainda terá muitas batalhas pela frente. Todos nós precisamos desconstruir o que nos ensinaram, independente do tamanho do seu corpo. Sabe aquela frase da filósofa Angela Davis “Numa sociedade racista, não basta não ser racista, é preciso ser antirracista”? Então. É sobre isso. E não, não tá tudo bem.

 

Se este texto bateu forte em você, e esse era meu objetivo, quero pedir para você compartilhá-lo por favor com pessoas que você acredita que possam ser impactadas também. E não, não é meu ego falando rs, expus uma situação mega constrangedora da minha vida rs, mas precisamos falar sobre Gordofobia para que quem sofre possa se identificar, se apropriar do discurso e se defender mais e para que, quem nunca botou reparo nas coisas comece a pensar sobre.

Me ajuda nisso por favor?

E se você, se impactou com o texto porque já viveu situações de Gordofobia e quiser conversar comigo, fique à vontade para me mandar msgs ok?

Muito obrigada!

1 comentário »

  1. Adriana disse:

    Querida Fernanda, não posso imaginar o tamanho da sua dor, quando faz um depoimento tão intimo e profundo como esse. Mas consigo ver a sua intenção de chamar a atenção pro desrespeito que existe com tudo que que está fora das normas padrão aplicadas em nome da saúde. Hoje, aos 53 anos, tbm vivo a vergonha velada por não ter mais um corpo magro, que tive até os 40 e poucos anos. Aos poucos, tudo foi ficando diferente, e me vi diferente e extremamente desconfortável com a minha aparência. E a primeira cobrança vinha de mim mesma. Foi difícil admitir em mim a gordofobia. Não pensamos nisso qdo estamos no padrão. Hoje, vivo um pouco mais tranquila, mas talvez a maturidade tbm ofereça uma certa liberdade estética e a consciência das atrocidades a que nos submetemos dentro da nossa cultura, pra agradar ainda não sei quem. Hoje sou uma defensora da clareza, não me imponho mais o silêncio quando escuto falas preconceituosas em relação ao que é diferente daquilo que é imposto pela norma cultural. O caminho é longo e doloroso, mas ainda acredito que vamos conseguir nos sentir confortáveis com nossos corpos com a forma que eles tem. O seu texto foi cirúrgico. Sinta o meu abraço e acolhimento, mesmo aqui de longe, nesse mundo virtual🥰

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